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Quem realmente afundou os navios brasileiros na SGM ?

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Por muito tempo eu tenho visto que uma postagem ou outra sobre a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial provoca uma discussão acalorada sobre aquele motivo que se tornou o estopim de nosso envolvimento militar: os afundamentos dos navios.

Apesar de os fatos serem claros, atestando que os ataques foram realizados por submarinos do Eixo em nossa costa e em águas do Hemisfério Norte e da África do Sul, ainda persiste a insistente alegação de que, na verdade, nós fomos “ludibriados” a entrar na guerra por submarinos americanos, que afundaram nossos navios e colocaram a culpa nos alemães.

Vou fazer aqui minha análise, baseada no que sei e pesquisei ao longo desses anos, e vou tentar jogar uma luz no assunto.

Primeiro, esta história de “submarinos americanos nos atacando” surgiu anos depois da guerra, na forma da conhecida ofensiva revisionista de esquerda que tanto afeta o Brasil desde longa data, e que também é responsável pelo famoso mito de que o Império Brasileiro lutou a Guerra do Paraguai a mando da Inglaterra (nem tínhamos relações diplomáticas com a Inglaterra na época, só para vocês verem até onde esse pessoal é capaz de ir para denegrir a imagem do próprio país), mas isso é assunto para outra discussão.

É normal (infelizmente) que num país que não investe em educação, os mitos populares se tornem conhecimento científico, e mesmo penetrem em sala de aula. Isso contribui para perpetuar muitas mentiras a respeito da nossa história nacional.
Mas vamos aos fatos.
O Brasil era grande parceiro comercial da Alemanha na década de 1930. A Alemanha precisava de matérias-primas e o Brasil precisava de produtos industrializados. Era quase uma relação perfeita. Para completar, o Ministério das Finanças da Alemanha iniciou um programa de comércio exterior utilizando uma moeda paralela chamada Marco Aski (Auslander Sonderkonten für Inlandzählung).
Neste programa, os países faziam pagamentos de compras em sua moeda nacional, que eram então convertidos em Aski e trocados no Reichsbank por créditos. Desta maneira, não era necessário ter reservas em moeda estrangeira para fazer negócios, o que ampliava bastante a margem comercial que o Brasil tinha com a Alemanha. Apesar dos protestos norte-americanos, Vargas sabia que este comércio era essencial para o Brasil e não tomou medidas para diminuí-lo.
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Foi somente em setembro de 1939, com o início da guerra na Europa, que Vargas percebeu que não mais poderia contar com a Alemanha como parceira comercial de porte. Afinal, com sua situação geográfica pouco privilegiada, os alemães estariam bloqueados pela Marinha Inglesa de acessar o Atlântico. Por pragmatismo geopolítico, Vargas sabia que os Estados Unidos seriam a potência a exercer influência no Hemisfério Ocidental até o término do conflito europeu. Se terminasse com uma vitória alemã, entretanto, não seria prudente rasgar as boas relações com o Reich tão depressa.
Mas os Estados Unidos já haviam se decidido em dar apoio aos Aliados, e sua influência geopolítica não podia ser negada. As coisas ficaram mais tensas após a rápida vitória alemã contra a França em junho de 1940, que levou a um rápido crescimento de prestígio da Alemanha nos países sul-americanos. Os EUA não perderam tempo e convocaram uma conferência para o mês seguinte em Havana, Cuba, onde foi decidido por todos os estados americanos que o ataque de uma potência estrangeira a qualquer um deles significaria uma agressão a todos.
Neste mesmo ínterim, os EUA assinaram um acordo comercial com o Brasil para compra de toda sua produção de matéria-prima, visando impedir qualquer suprimento para a Alemanha ou Itália. Em julho de 1941, os americanos iniciaram a ocupação das bases aeronavais do nordeste, em Recife e Natal, para combater os submarinos do Eixo que operavam na área. No mês anterior, os EUA também já haviam ocupado a Islândia, na zona europeia do Atlântico Norte.
Como podem ver, apesar de oficialmente neutro, o Brasil já cooperava claramentecom os EUA, cedendo-lhes bases em seu território e também matérias-primas importantíssimas, sendo a maior delas a borracha. Já com o Lend-Lease em pleno funcionamento, os Estados Unidos estavam neste ponto suprindo com armas Grã-Bretanha, União Soviética e Brasil, fechando um cordão global de contenção contra o Terceiro Reich – o que não poderia deixar de ser notado pelos alemães.
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Em 22 de março de 1941, o primeiro navio brasileiro foi atacado: o Taubaté, que navegava no Mediterrâneo Oriental. O navio foi vítima de um ataque aéreo da Luftwaffe, enquanto portava a bandeira nacional no topo do mastro, segundo relatos do capitão Mário Fonseca Tinoco. O Taubaté seguia para Alexandria, numa zona de guerra, e embora o ataque tenha se dado contra uma embarcação de um país neutro, a Embaixada Alemã no Rio de Janeiro recusou-se a dar explicações quando inquirida. A degradação de relações bilaterais a este ponto é clara.
Quando os EUA foram atacados em Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941, Hitler rapidamente viu que a escalada armamentista do país que supria seus inimigos seria vertiginosa, então declarou-lhes guerra quatro dias depois, para poder agir diretamente contra as forças americanas.
E claro, respingos desta decisão afetariam diretamente o Brasil. Ora, se a preocupação de Hitler com os EUA era seu contínuo suprimento de material bélico para os Aliados, é claro que a fonte de matéria-prima desse material bélico se tornaria um alvo primordial. E note como é logo a partir daí que começa a série de afundamentos de navios brasileiros.
Foi justamente durante a Operação Paukenschlag (“Rufar dos Tambores”) que os primeiros navios brasileiros foram a pique, na costa leste dos EUA: o Buarque, em 15 de fevereiro de 1942 e o Olinda três dias depois; ambos vítimas do U-432 do Kapitänleutnant Heinz-Otto Schultze.
É importante ressaltar que o esforço de guerra submarina contra os navios brasileiros não advém de alguma “birra” alemã com Brasil, mas sim de um esforço naval coordenado do Eixo. Isso mesmo, Alemanha e Itália.

 




Embora presa no Mediterrâneo pela presença inglesa em Gibraltar, a Regia Marina conseguiu passar um número de seus grandes submarinos para o Atlântico, operando a partir de Bordeaux, na França, uma unidade chamada BETASOM (Bordeaux Sommergibile) sob comando do Almirante Angelo Parona, que respondia diretamente a Karl Doenitz em Berlim.Desta maneira, não é de se estranhar que o próximo navio brasileiro a ser afundado, oCabedelo, o foi pelo italiano RS Da Vinci no Atlântico Norte, em 25 de fevereiro. Este afundamento foi inclusive o primeiro a apresentar um grande número de baixas: 54, toda a tripulação.

Os afundamentos seguiram em passo firme até o mês de agosto, com mais 12 embarcações nacionais destruídas. Mas o que realmente devemos analisar são os fatos ocorridos em agosto de 1942, que levaram definitivamente o governo Vargas a declarar guerra ao Eixo.
Sabemos que neste estágio a cooperação Brasil-EUA estava num ponto bastante alto, inclusive com a troca de personalidades da área de cultura entre os dois países, como a conhecida vinda de Walt Disney ao Rio, que culminou na criação do personagem Zé Carioca. Sabemos também das negociações para financiamento americano da construção da primeira siderúrgica nacional, obra da hábil capacidade diplomática varguista. Mas aí entra em cena a série de afundamentos de 16 e 17 de agosto.
Os cinco navios brasileiros que foram ao fundo neste período (Baependi, Araraquara, Aníbal Benevolo, Itagiba e Arará) vitimaram 600 pessoas. O governo declarou guerra à Alemanha e Itália em 22 de agosto.

Aí vem a famosa alegação: os americanos desejavam atrair o Brasil para a guerra, então afundou-lhes os navios e jogou a culpa nos alemães. E isso faz sentido? Vejamos: em agosto de 1942, o Brasil já recebia em seu próprio território a maior base americana fora dos EUA; já havia aeronaves e navios americanos operando por todo o litoral, desde Natal até Florianópolis; já vendia para os EUA todo tipo de matéria-prima que estes necessitavam; e ainda era suprido pelos EUA com as armas que havia solicitado.Mas vimos que os alemães não viam com bons olhos a questão do suprimento de matérias-primas brasileiras aos Estados Unidos (afinal, sem borracha para fazer pneu nenhum exército se move), e desde o começo do ano vinham atacando os mercantes que faziam este suprimento para os EUA. Repare que eu escrevi “os mercantes”, e não “os navios brasileiros”. Isso porque os alemães atacaram qualquer navio que suprisse os EUA.

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Os mexicanos entraram em guerra até antes de nós, em 22 de maio de 1942, porque dois petroleiros seus foram afundados por U-Boots. Então, percebemos aí a clara política alemã de não distinguir bandeiras de navios, visto que o importante era prejudicar o esforço de guerra norte-americano. E esta é uma decisão puramente prática, porque neste estágio não restavam mais grandes potências que a Alemanha pudesse temer: todas já eram suas inimigas.

Desta forma, o risco calculado de afundar navios de nações neutras era, para a Alemanha, baixo, quando comparado aos benefícios de prejudicar o abastecimento dos EUA.

E o mais interessante de tudo: os alemães e italianos nunca negaram sua responsabilidade pelos afundamentos! Está tudo bastante claro e descrito nos arquivos navais de ambos os países. A “bíblia virtual” para qualquer pesquisador da Kriegsmarine é o site www.uboat.net, que publica uma quantidade espantosa de dados sobre a guerra dos submarinos alemães tendo como uma de suas bases os arquivos doDeutsches U-Boot Museum em Cuxhaven, acessível em www.dubm.de. Os registros italianos podem ser conferidos no excelente www.regiamarina.net. Nos dois websites, você pode fazer uma pesquisa detalhada da folha de serviços de cada submarino, e ver que lá estão registrados os afundamentos dos navios brasileiros.
O protagonista dos afundamentos de agosto de 1942 foi o Korvettenkapitän Harro Schacht, em seu U-507. Em sua terceira patrulha, ele havia zarpado de Lorient, na França, em 4 de julho de 1942, com destino ao Atlântico Sul. Esta área já era umdestino comum para os submarinos, visto a grande quantidade de navegação Aliada na região, tanto para suprir os EUA, quanto de comboios que passavam pelo Cabo da Boa Esperança rumo ao Índico ou à Inglaterra.
Schacht se aproximou da costa brasileira em 12 de agosto, afundando o Baependi na costa sergipana quatro dias depois. Em apenas 48 horas ele afundaria 6 navios brasileiros (incluindo a barcaça de pesca Jacira), todos devidamente comunicados ao QG da Kriegsmarine na Alemanha.
No dia em que o Brasil fez sua declaração de guerra, 22 de agosto, Schacht ainda afundaria o cargueiro sueco Hammaren, na costa da Bahia (também devidamente telegrafado a Berlim). Fica aí a pergunta: se fossem os americanos, teriam eles também afundado o navio sueco, para “forçar a Suécia a entrar em guerra”? Somente para conhecimento, 88 navios suecos foram afundados durante a guerra por submarinos alemães – seria por acaso uma “guerra fantasma” norte-americana, contra a navegação sueca, para forçar este país a declarar guerra à Alemanha? Será que os alemães tomariam a culpa por 88 navios afundados em 6 anos de guerra, quando na verdade nada tinham a ver com o caso? Se soa absurdo é porque é.
Você pode conferir dia-a-dia o progresso da 3ª patrulha de Schacht no U-507 simplesmente clicando aqui. Vai ver ainda que ele, após afundar os navios na costa brasileira, auxiliou no resgate dos sobreviventes do navio de passageiros inglês SSLaconia, ao sul de Dakar. Não se tratava, também, de um “demônio sem alma” submarino. Ressalto isso porque fica bem mais clara qualquer compreensão quando é feita à luz dos fatos, e não do folclore da época.
Como se não bastasse, vamos agora a um relato de alto-escalão (o mais alto possível), para comprovar que a Alemanha sim, planejou, aprovou e executou os afundamentos dos navios brasileiros na Segunda Guerra. Seguem as palavras do próprio Almirante Karl Doenitz, comandante da arma de submarinos (Ubootwaffe) e, a partir de 1943 comandante da própria Kriegsmarine, em seu livro de memórias “Zehn Jahre und zwanzig Tage” (“Dez Anos e Doze Dias“). Grifos meus:
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“Finalmente, havia a possibilidade de operações na costa do Brasil. Nossas relações políticas com aquele país vinham há algum tempo se deteriorando cada vez mais, e ordens do Alto Comando Naval com relação à nossa atitude para com a navegação brasileira enrijeceram-se de acordo.
Em 27 de janeiro de 1942, como resultado do estado de guerra que existia entre nós e os EUA, o Brasil rompeu relações diplomáticas conosco. Até então, nenhum navio brasileiro havia sido afundado por um submarino alemão.
No entanto, entre fevereiro e abril de 1942, nossos submarinos torpedearam e afundaram sete navios brasileiros, já que tinham todo o direito de fazê-lo, visto que os capitães não conseguiram determinar sua natureza neutra. Eles navegavam sem luzes e em zig-zag, alguns armados e pintados de cinza, e sem bandeira nacional.
Depois disso, mais e mais navios brasileiros instalaram armas, até que toda sua frota estava armada.
No fim de maio, o Ministério da Aeronáutica do Brasil anunciou que todas as aeronaves brasileiras estavam atacando submarinos do Eixo, e continuariam a fazê-lo.
Sem qualquer declaração formal, estávamos então em guerra contra o Brasil, e em 4 de julho os U-Boots receberam ordens de nossa liderança política para atacar todos os navios brasileiros.
Do outro lado dos estreitos entre a África e a América do Sul operava o U-507 (Korvettenkapitän Schacht). Lá, fora de águas territoriais, ele afundou cinco navios brasileiros. Nisto ele agiu de acordo com as instruções que recebera, com a anuência do Ministério do Exterior e do OKW.
O governo brasileiro tomou estes afundamentos como razão para declarar guerra contra a Alemanha.
Embora isso não alterasse em nada nossas relações existentes com o Brasil, que já tomava parte em ações hostis contra nós, foi sem dúvidas um erro ter trazido o Brasil a uma declaração oficial; politicamente deveríamos ter sido aconselhados a evitar isso. O comandante dos submarinos, no entanto, e o capitão do U-Boot em questão, como membros das forças armadas, não tinham escolha a não ser obedecer as ordens que haviam recebido; não cabia a eles pesar e medir as consequências políticas.”
Está aí, bem claro. Vemos com todas as palavras o testemunho de Doenitz sobre como progrediram (ou deterioraram, se preferir) os eventos navais que levaram o Brasil a declarar guerra à Alemanha em 1942.

As provas documentais dos ataques vão de acordo com o desenrolar da situação política da época: o crescente alinhamento político e estratégico do Brasil com os Estados Unidos fez com que a Alemanha e Itália começassem a atacar os navios brasileiros, o que eventualmente levou o Brasil à beligerância.E às provas documentais somam-se as evidências físicas: 11 submarinos do Eixo encontram-se afundados nas costas brasileiras, e um deles (U-513) foi localizado na costa de Santa Catarina em 2011. Não é difícil concluir que 11 submarinos afundados em nossas costas demonstram que um esforço naval de porte foi montado contra nós.

Dadas as evidências históricas, físicas e documentais, não há razão para questionar a autoria ítalo-germânica dos ataques aos nossos navios. A fantasia de que os americanos provocaram os afundamentos para nos tragar para a guerra não passa de “sabedoria popular”, desprovida de qualquer suporte.
Cada ação acarreta uma reação, e na cadeia de eventos da Segunda Guerra Mundial, nossa crescente aliança com os americanos nos levou às garras da arma submarina do Eixo.
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WebStories da Fatos Militares

Lane Mello
Fundador e Editor da Fatos Militares. Jovem mineiro, apaixonado por História, futebol e Games, Dedica seu tempo livre para fazer matérias ao site.

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1 Comentário

  1. Excelente trabalho de pesquisa e bem esclarecedor, aprendi na escola que era o mais provável os Americanos terem feito os afundamentos, mas contra fatos e documentos não restam dúvidas da teoria da conspiração. Obrigado por deixar a história mais limpa e sem mitos.

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